Crônicas


O AZUL DE UMA CANETA
Conto Baseado na Musica Homônima de Markão AborígIne


O celular toca como despertador, diariamente, antes mesmo do sol despertar. As dificuldades eram as mesmas, ele estava feliz em mais um dia poder olhar sua esposa e beijar seu filho antes de sair para a rotina: procurar emprego para o sustento familiar.

Uma parada na padaria e, fazendo cálculos, retirou do pouco dinheiro que tinha acumulado a sua passagem. O que sobrou deu apenas para comprar um mero café preto. O ‘’café da manha’’ com sabor de sofrimento. ‘’ Que eu comesse pouco, meu Deus, mas que nunca falte à minha família’’.

Café tomado, hora de começar a batalha. O importante é que ele encontre logo o emprego tão ansiado. Parada de ônibus lotada de outros guerreiros, cada um com seus objetivos, seus sonhos e suas historias de vida. Depois de muitas lutas perdidas, a esperança de um dia diferente. Ele voltaria para casa e contaria à mulher que conseguira um emprego, que na segunda já começaria, que não precisariam mais dormir pensando nas inúmeras contas atrasadas e, quem sabe, até daria para comprar uma bola que o filho tanto pedia...

Queria ao menos ter uma certeza de mudança de vida a partir daquela oportunidade, mas confiante ele vai, apertado entre as pessoas, com o currículo na mão. Alguém haveria de gostar, e ele estaria disposto a tudo para poder superar aquela fase de azar.

Adormece, sonha com sua infância, saudades dos pais e da vida simples que levam. Com o dinheiro do novo emprego, conseguiria viajar para ver os parentes que ficaram no Nordeste, e os quais não via há mais de uma década. Estariam todos vivos? Todos bem? O sono acaba, mas a viagem não, a ‘’civilização’’ é longe de onde mora.

Enfim o dia fica claro, e o destino é chegado. Olha para o prédio grande e pensa como o homem poderia construir algo deste tamanho. Não entende como o ser humano consegue ser tão supremo e tão medíocre, mas não fala nada, somente pensa.
- Por favor, senhora, eu vim para a vaga de emprego que está no jornal. – Ela nem sequer olhou para ele, nem por um segundo.
- A identidade, por favor. – Depois de alguns minutos, disse que poderia entrar e aguardar a vez de ser chamado.

Ao chegar à sala de espera, qual foi sua surpresa a identificar milhões de seres iguais a ele. Uns altos, outros baixos, alguns gordos, outros magros, mas todos com a mesma necessidade. Mas a fé em Deus era superior ao medo. Deviam ser vagas diferentes. Com o pouco estudo que tinha, não estariam concorrendo todos à mesma vaga. A hora já ia adiantada, sentia fome, mas tinha que suportar, não sabia a hora que comeria novamente, e nem o que seria.

A sala estava ficando mais vazia. Logo o chamariam, ele estava disposto a prestar qualquer serviço e o salário que pagassem seria aceito. Não estava em condições de exigir. Já fizera tanta coisa para o sustento familiar, que não se envergonhava do que lhe fosse ordenado.

- Sinto muito, senhores, mas a vaga para serviços gerais já foi preenchida.

Nunca poucas palavras pesaram tanto. Não pensava em outra coisa a não ser na feição de sua esposa ao chegar a casa sem ter conseguido emprego. Saiu pelas ruas sem destino, apenas com a esperança de ler em algum lugar: “precisa-se de ajudante”.

O sol quente lhe fazia sentir cansado. Quando se viu em frente a um restaurante, pensou que não lhe negariam um prato de comida, caso pedisse. Caso dessem poderia levar um pouco para casa, será que o filho já havia comido?
- Senhor, desde ontem que não como. Poderia me pagar um prato de comida. – Como estava errado. Não só não lhe deram comida, nem resposta lhe deram.

Entendeu a resposta. Aquele senhor bem vestido saindo daquele carro bonito não poderia lhe negar. “Ele deve ganhar muito bem”, pensou. Mas a resposta não foi diferente. Nada de comida. “Qual o problema das pessoas. Será que elas pensam que não é dever delas ajudar o próximo. Elas devem achar que eu peço porque gosto, porque quero”.

Melhor oferecer trabalho por comida. O dono do restaurante ficou com pena, mas empresário é empresário. Ele não poderia dar esse exemplo, o que as pessoas iriam pensar? Não poderia dar comida a ele, por mais que lhe partisse o coração ver alguém com fome, e saber que um terço do que está nas mesas não vai ser comido.

Saiu de lá triste, ainda caminhou um pouco, pensando nas possibilidades. Mas elas não eram muitas. Encontrou uma senhora numa lanchonete, que enfim lhe pagou um lanche. A fome passara, ao menos é no que ele queria acreditar. Não poderia ficar pensando em comida, não na situação na qual se encontrava.

O dia passou, assim como as suas oportunidades. Na verdade não vira nenhuma. Para a maioria das pessoas ele era apenas um “preto” que não tinha trabalho e nem nada para oferecer. Mas como ele ofereceria algo, se nunca lhe davam a oportunidade? Era difícil entender as pessoas, elas eram sempre muito estranhas para ele.

Melhor voltar para casa. A mulher haveria de entender que não fora um bom dia. Mas amanhã seria melhor. Ainda esta noite conseguiria o dinheiro da passagem de amanhã e as coisas se ajeitariam. O ônibus para a cidade em que mora só passa até às 18h, não tinha ideia de que horas eram, mas devia ser tarde. 18h20.” Deve passar atrasado hoje, vou esperar”. Após as 19h ele cansara de esperar, só amanhã cedo passaria outro. Precisava de um lugar seguro para passar a noite. Mas onde?

Lembrou que a três quadras passara por uma construção, um prédio abandonado, com certeza ninguém se incomodaria se ele passasse algumas horas ali, fora do perigo noturno. Logo iria amanhecer ele sabia disso.

Ali sentado, enrolado em si mesmo, de cabeça baixa, um casal prende a sua atenção. Além deles, mais ninguém na rua. É quando começa a sonhar acordado, se levantando, armado, levando tudo que o casal possuía, agredindo, verbalmente e fisicamente. Um barulho o faz acordar de seu transe e sentir medo e nojo por esse pensamento. Estavam começando os seus momentos de descontrole.
Como poderia? O que estava acontecendo? Será que o desespero era tão grande ao ponto de começar a pensar em roubo? E batendo em seu próprio peito fixou na sua mente que jamais passaria esse pensamento de novo na sua cabeça e junto a isso a lembrança de seu pai, seu grande conselheiro.

Não conseguiu dormir a madrugada inteira, na sua cabeça somente a imagem da sua mulher e do seu filho. O que sua esposa estaria pensando agora? Não tendo como ligar pra ela, ficava difícil dizer que estava bem. Lembrou que havia em sua carteira, um cartão com poucas ligações. Qual foi sua surpresa quando viu que tinha perdido sua carteira, salvando seus documentos que estavam junto ao seu currículo já amassado. Sem cartão telefônico, pior, sem como voltar pra casa.

Já que estava ali mesmo, não tinha outra escolha, o jeito era tentar mais uma vez.

Fome, cansaço, sono, falta de fé, a mente cansada já fazia ouvir e ver coisas. Confundiu um garoto com seu filho, ouviu alguém chamar seu nome, a visão embaçava, precisava comer e descansar.

Com o corpo no seu limite, o jeito foi tentar pedir a alguém alguns trocados:
-- Senhor, eu lhe imploro, preciso de comer. Estou cansado. Perdi o dinheiro da minha passagem. Estou aqui à procura de emprego.

-- Você acha que eu não escuto isso todo dia? Pessoas como você sempre vem com essa desculpa. Sai fora vagabundo! Acha que vou patrocinar teu crack e tua maconha, é?

-- Senhor, eu sou pai de família, eu trabalho. Ajude-me!
-- Escute aqui seu preto. Eu não vou ajudar você em nada! Seu maconheiro! E você sai daqui, antes que eu chame a policia!

Desolado e julgado, sentou em um lugar qualquer. Um senhor, com seus cinquenta e poucos anos, sujo e com barba e cabelos por fazer, sentou-se ao seu lado.
-- O que o senhor quer? Não tenho nada. - Disse sem saber o que o senhor queria com ele.

-- Eu percebi. Vim aqui perguntar. O que você esta fazendo aqui?
-- Sai da minha cidade para procurara emprego e já estou aqui no meu segundo dia. Sem dinheiro, sem comida, sem emprego. Nada! Não tenho absolutamente nada!

-- Você se parece muito comigo, meu filho. Só tenho uma coisa a dizer pra você: vá embora enquanto tem tempo! Aqui não tem nada pra você. Cheguei aqui com quinze anos de idade, fugido de casa. Humilhava minha mãe e todos os meus irmãos. Vim procurando trabalho e ninguém me empregou. O pouco dinheiro que tive foi pra me alimentar.

Morava na rua mesmo! Até que um dia para dormir na rua, com o frio que era muito, comecei a ficar bêbado para conseguir dormir. Ai acabei aqui, mendigo, pedindo para sustentar o vicio e de vez em quando tentar comer algo. Vá embora meu filho. Você é novo. Volte pra sua cidadezinha, peça ajuda aos seus pais se puder. Eu, por orgulho, nunca fui atrás de minha mãe e meus irmãos. Vá! O Sonho romântico aqui já acabou faz tempo.

Agradecido pela conversa, mas não totalmente convencido, foi em todos os lugares onde houvesse uma porta aberta, um porteiro, pessoas na frente. Estava tão convencido que acharia algo, que esqueceu fome, cansaço e procurou incansavelmente. O resultado seria mais um dia de batalha perdido. O sol estava se pondo. Tentou mais uma vez pedir dinheiro para ver se pelo menos conseguia voltar pra casa. Sem sucesso...

Como não sabia notícias do marido há dois dias, Maria e a criança resolveram sair pela vizinhança para perguntar se alguém o vira. Ela não tinha noção do que poderia ter acontecido. Em uma das visitas, o filho brincava no chão da sala, enquanto a televisão noticiava a morte de um homem numa construção abandonada. A vítima havia sido espancada e incendiada por alguns vândalos ainda não identificados. O repórter falava de maneira rápida a informação, que só chegou até Maria quando ela ouviu o nome do marido e a foto que havia em seu único documento encontrado: a carteira de trabalho.

- Mãe, olha o papai na TV.

Nesta semana os jornais venderam e faturaram com a história da família, diferente dos mesmo, pois sequer pensão restou para os filhos, pois a Carteira de Trabalho dele, não tinha assinatura de um contratante, apenas o relato de quem usou a mesma como Diário.

A esposa não teve acesso, mas semanas depois viu novamente o rosto de seu companheiro estampando a capa de uma grande Revista com os dizeres “O azul de uma caneta – as últimas horas de vida de um desempregado brasileiro”.

O Seu Joaquim da Banca reconheceu a jovem Maria e bastante emocionado lhe presenteou com a revista. A matéria principal expõe:

Brasília
Capital da Esperança

20 de abril de um ano qualquer

Acordo bem cedo, missão encontrar emprego.
Ônibus lotado, mal alimentado, vários do mesmo jeito.
Olhares em que só vejo insegurança
O corpo de pé, mas adormecida a esperança.

Pela janela noto boas condições, privilégios.
Contando moedas para o meu retorno ao inferno
Nessa curta viagem vejo dois mundos
Onde sou um degrau a ser pisado na escada do futuro

Sirvo pra servir, básico ao acabamento.
Barrado na entrada, porta fechada, suspeito, elemento.
Minhas mãos calejadas deram o nó em muitas gravatas
O suor de meu rosto ainda limpa suas privadas
A procura de mais uma chance... Aqui estou
Chegou minha parada minha jornada começou
Avenidas, endereços, entrevistas, imploro.
Dou meu sangue por um subemprego, por favor, vem logo.

Curriculum não tenho, mas me empenho palavra de homem.
Minha agonia se soma a de todos os meus clones.

Nunca, nunca, nunca posso desistir.
Por minha família eu não desisto
O que será de minha esposa?
O que será de meu filho?

Bater de porta em porta e o que vier aceito.
Lavador de chão, peão, servente, pedreiro.
Aceito o que tiver de braços abertos
Só pra ver meu filho com um caderno

Não hei de me render, pois meu Senhor és forte.
Um centavo honesto é um milhão perante o ouro do revolver
Mesmo que do lixo tire meu sustento
Da sobra do restaurante meu alimento

O dinheiro é necessário pro comer, pro vestuário.
Me contento com diárias, mas meu sonho é um salário
E na carteira de trabalho ver o azul de uma caneta
Hoje não realizado! No céu estrelas

Que iluminam meu desgosto, meu entristecer.
Juntamente a uma pergunta: Emprego algum por quê?
Talvez porque o segundo grau não tenha completado
Ou pelo endereço do meu lar, do meu bairro.

Entre o endereço de firmas perdi meu vale transporte
Dormi fora de casa não pode
Se eu pedir eu sei que alguém vai me ajudar
“Sai fora vagabundo tu quer é si drogar”.

Nunca, nunca, nunca posso desistir.
Por minha família eu não desisto
O que será de minha esposa?
O que será de meu filho?

Achei uma cobertura vou deitar, tenta dormir.
Espero que ninguém venha se divertir
Minha carteira de trabalho em branco vira um diário
Onde a caneta azul escreve o triste fato

Mais um dia cansado, sem emprego.
Portas se fechando, o caminho mais estreito.
Escutando insultos, vítima do preconceito.
“Não contrato bandido, não contrato preto”.

Pros homens um suspeito, humilhado pela madame.
Soco, sangue, e como se não fosse o bastante.
Sem emprego, sem experiência.
Será que acordar com consciência?

E ver minha família sem um salário
Ou será que esta noite morrerei queimado?

Nunca, nunca, nunca posso desistir.
Por minha família eu não desisto
O que será de minha esposa?
O que será de meu filho?

Não posso desistir
Vou ter que prosseguir
Pois a caminhada é árdua na nação

É triste meu irmão
Ver meu filho sem um pão
Mas se hoje eu não consigo amanhã eu vou atrás.

Meu filho não vai mais chorar
Minha mulher vai se alegrar
Uma vida boa eu vou lhes dar.

E tirarei as amarguras
O sofrimento, a dor sem cura.
E lhes trarei tudo de bom eu sei.

Derrotado nunca serei!


Por Markão Aborígine, Sarentaty Inês e Rodriggo Misquita.




O ROTEIRO


A ficção é contada a partir da história de 3 personagens principais: Uma modelo, seu namorado médico e um jovem viciado em álcool e que curte baladas.

A jovem modelo Karina é protagonista de comerciais de cerveja e segue o estereotipo machista: “Mulata”, loura e biquíni. Durante a animação são constantes as cenas com a mesma acompanhada por outras modelos.

Corta-se a imagem onde o médico, que também é seu namorado, lhe questiona mostrando imagens de acidentes e de como seus pacientes ficaram. Num misto de preocupação e fúria ele mostra à Karina fotos de paraplégicos e conta estórias de seus pacientes. Após a discussão ambos se abraçam.

Após a despedida, a mesma segue para seu carro. Nisto o jovem que aparecia em relances se embriagando, dirige-se embriagado e tremulo ao seu automóvel. Dar-se destaque a dificuldade do mesmo por a chave na ignição.

O início da última cena se dá quanto há o encontro dos três personagens. O Jovem após ver comercial protagonizado pela modelo sai do bar e vai dirigir. Não liga para o amigos lhe aconselhando a chamar um táxi.

Nesse momento há um close nas mãos tremulando a chave enquanto fala: “Eu sou é homem porra, piloto de fuga”.

Ao virar a esquina não para no sinal vermelho e atropela uma mulher que estava entrando em seu carro. Arrastou a mesma por uns 10 metros, enquanto a chave fica balançando na porta ainda fechada.

Mesmo bêbado assusta-se ao olhar a mulher desmaiada e pensa está alucinado, pois a mulher que acabara de atropelar é a mesma que viu minutos antes numa propaganda de TV lhe oferecendo cerveja.

Ambos são levados ao hospital. Filho de empreiteiro e dirigindo um carro importado sequer fora algemado, mas o estado de embriaguez era tamanho que também fora levado ao Hospital.

Pela terceira vez a modelo e um jovem burguês estão próximos. Hospitalizados em um Clínica Particular onde o namorado de Karina trabalha.

Neste instante o dá-se destaque o Médico olhando a Radiografia, onde constatou que o jovem que a poucos momentos estava sorrindo e bebendo com amigos estava com hemorragia interna. Num corte rápido mostra-se a imagem do jovem capotando e depois sendo enterrado, de Karina e seu namorando chorando, enquanto ele lhe consola.

A cena final apresenta Karina novamente em propagandas da TV... Mas desta vez a modelo em uma campanha contra o consumo de álcool, dando destaque não mais ao seu corpo e sim a cadeira de rodas.

Será mesmo ficção?

Um comentário:

  1. salve mestre markão, satisfação demais em poder acessar essa obra prima obrigado por partilhar conosco esta rica obra, literatura popular periférica protagonizando nossa história, me sinto super representado por você irmão gratidão por partilhar sua visão e experiencia conosco!

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